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Relato completo sobre a escalada no Mont Blanc do Murilo Lessa e do Walker Figueiroa, além de dicas para quem se aventurar a escalar no Mont Blanc.
É clichê mas vale a lição...
“O que mais me surpreende na humanidade são os homens que perdem a saúde pra juntar dinheiro, depois perdem o dinheiro para recuperar a saúde. Por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem do presente de tal forma que acabam por não viver nem o presente nem o futuro... E vivem como se nunca fossem morrer... E morrem como se nunca tivessem vivido.” - Dalai Lama
Nota: esse é um relato honesto da minha experiência no Mont Blanc. Essa montanha marcou o início de muita coisa. Ao final do texto eu listo nomes, endereços, telefones, preços, custos e demais informações que fizeram a viagem acontecer.
Prólogo
No começo de junho eu recebi um e-mail do Walker. Ele estava vindo para a Europa trabalhar como guia de canyoning e entre uma empresa e outra conseguiria uma semana de "folga" para escalar o Mont Blanc, perguntou – e nem precisava – se eu estaria interessado em formar uma dupla com ele. Meu conhecimento sobre neve e gelo até então eram nulos, digo, eu já tinha visto neve, já esquiei quando criança, porém nada que envolvesse uma situação "montanhística". Conceitos como "alta montanha" e "mau de altitude" eram coisas que eu conhecia apenas de livros e vídeos - enfim, ia ser tudo muito interessante. A única coisa que pedi foi um cronograma fixo porque eu trabalho e não dá assim do nada pra pedir pra sumir de cena por uma semaninha. Lógico que enrolado que só ele, foi exatamente isso o que ele fez, entre achados e desachados, datas e adiamentos, o Walker me liga no final de agosto, em plena quarta-feira e diz que a única data que ele pode é agora na próxima semana. Teríamos que estar segunda-feira em Chamonix. Eu estava trabalhando 50 horas por semana, sem tempo pra nada, e assim do nada, em três dias eu precisava conseguir uma semana de férias no restaurante em véspera de bank holliday, ou seja, na época em que eles mais precisam de staff (isso porque eu já tinha mais férias marcadas para dali 20 dias), também precisava conseguir férias no meu college – estudante não pode ficar de giro pela Europa sem autorização da escola sob pena de não conseguir mais voltar pro Reino Unido – e comprar o equipamento porque toda minha tralha de camping ficou no Brasil e porque em termos invernais, eu não tinha sequer idéia do que comprar. “– Perfeito querido!”, respondi de imediato, “- Tô dentro! Estarei lá segunda, no máximo terça-feira cedo". E assim foi feito.
O primeiro passo foi encarar minha gerente operacional, uma gigantesca loira, estilo essas matronas italianas, de largos braços, pernas e sorriso, e franqueza e sutileza nas mesmas proporções. Por essas coincidências da vida ela, que nunca está no restaurante, estava lá quando cheguei na quinta-feira. Com o estômago embrulhado fui explicar minha situação. - Dee, do you have a second? , ela estava de saída, pediu pra eu ser rápido.- Eu te mandei um e-mail, você chegou a ver?! Não, ela não tinha. Aff.. rápido.. aí comecei aquele pré-xororô antes de lançar a bomba. Tentei explicar pra ela porque vim pra Europa, dos meus sonhos, fui falando sem parar, enrolando, enrolando e aí fui com tudo - Dee é o seguinte, ontem eu recebi uma ligação de um grande amigo, me convidando pra escalar o Mont Blanc, você conhece?! Então, eu preciso ficar off a semana que vem inteira. Lógico que ela falou que não. – Murilo my dear, semana que vem é bank holliday, a semana mais busy do ano, não tem jeito nenhum de eu liberar você, se ainda fosse na próxima semana eu até talvez conseguisse te liberar, mas agora não tem nenhuma possibilidade. No meio daquela chuva de justificativas lembro que a única coisa que ecoava na minha cabeça eram essas duas palavras, "nenhuma possibilidade". Nervoso silêncio. Os olhos se confrontam. - Dee, se eu não vier eu vou ser demitido né?. - Dear, não seja infantil. Você pode fazer isso em uma outra oportunidade, respondeu num tom paternalesco. Mais silêncio. - Não Dee, eu tenho que fazer isso agora. Tentei não soar desafiador, mas era isso mesmo. Eu tinha que fazer isso agora! - Se você não vier, você vai ser demitido por justa causa, não recebe suas férias e pode esquecer de usar a compania como referência para futuros empregos, disse ela. Soou como se eu pretendesse mesmo fazer uma futura carreira nesse ramo de hospitallity. Silêncio. É… referência é referência né... – Tell me now If you will not come, Murilo, perguntou ela com aquela cara de que sabe que vai dobrar o coitado. - Dee, isso não é ser infantil. É importante pra mim. Vou pensar no assunto e te ligo à noite. Vou tentar achar gente pra me cobrir a semana inteira e te aviso mais tarde - tentei evitar uma possível rota de impacto porque eu iria escalar de todo jeito, mas não queria soar desafiador. - Querido, você pode até tentar, mas você trabalha 52 horas na semana que vêm, eu já estou com gente de vários outros restaurantes cobrindo o pessoal daqui porque muita gente está em férias, acho difícil você conseguir. Ficamos então assim acertados, eu ia tentar dar um jeito e se não desse, ela entraria com o pé, e eu entraria com a bunda. O que não dava era entrar na próxima segunda perguntando pro cliente se ele quer o hambúrguer bem ou mal passado. Não senhor capitão. Eu vou escalar! Eu tinha acabado de pedir meu almoço antes de começar o shift mas tinha perdido o apetite. Fui checar minha rota pra próxima semana e eu estava mesmo é arruinado. Eu tinha que achar gente pra trabalhar 52 horas no meu lugar, durante uma semana. Comecei a discar números no meu celular. Meu restaurante é gigante, tem vários waiters, eu ia até cada um, pedia, implorava e explicava que eu tinha sido oferecido a oportunidade da minha vida, que eu ia ser mandado embora, que se eles me cobrissem eu os cobriria quantas outras vezes eles precisassem no futuro e por aí vai. Foi uma longa e tortuosa quinta-feira. Trabalhei nervoso, a cada dez minutos ia no banheiro tentar ligar pra algum amigo perguntar se ele poderia me substituir. Passei o dia com cara de velório. A boa sorte estava do meu lado e até a noite eu já havia conseguido me livrar de 80% dos meus shifts, e foram os piores, os double shifts que é quando você basicamente passa o dia todo camelando no restaurante. Havia uma luz no fim do túnel. Eu ainda teria dois dias pra conseguir me livrar de apenas mais três shifts. Eu vou conseguir, pensava! Incrível. Meu humor retomou e assim foi até o final da noite. Quando fui me despedir do meu chefe, ele me informou que havia acabado de receber um e-mail da Dee pra eu parar de procurar gente pra me cobrir porque ela havia dado um jeito de me substituir na próxima semana! Não pude acreditar. Meus olhos até marejaram. Mont Blanc aí vou eu.
Não posso deixar de registrar o desenrolar dessa história porque eu vou ser eternamente grato a essas pessoas... Eu trabalho para uma rede de restaurantes chamado Girafas, a cerca de dois meses fui transferido para o maior deles, fica em Waterloo e é incrivelmente busy. Eu ainda conheço muito pouco o pessoal a apenas agora estou começando a fazer amizades, o ritmo é muito frenético pra você ter tempo de ficar conversando e criando vínculos. Basicamente o Peter, um eslovaco com cara de brasileiro que eu mal conversava, se comoveu com minha história e minha cara de morte e mais tarde da noite, na festa de despedida da Lenka, comentou com a Nazli – que estava de férias – sobre a minha situação. A Nazli, que teve visto recusado pra sair de Londres, falou que sem problemas abriria mão da semana de férias e pegaria meus shifts! Ela desistiu das férias pra trabalhar 52 horas pra mim! Eles ligaram ainda da festa pra Dee, que ligou pra mim e acertou tudo. Fica aqui meu eterno agradecimento pra essas pessoas que pouco me conhecendo foram amigas, mas amigas mesmo, a ponto de se importarem de lembrarem de mim na festa e, independente dos motivos – me darem uma ajuda sem tamanho. Eu estava pronto pra lagar tudo, mas arriscava voltar sem emprego, falido, e com férias marcadas para os próximos dias - férias no sentido original do termo. Eu estaria duplamente arruinado.
De quinta em diante eu não consegui mais dormir tamanha minha excitação. Horas e horas na Internet pesquisando do Mont Blanc, das rotas, e principalmente, dos equipamentos que eu precisaria comprar. Não ia ser fácil, muito menos barato. Tentava confortar meu bolso com a desculpa de que muitos dos gastos seriam em equipamentos que não teriam que ser novamente comprados no futuro. No meio disso tudo o Walker me escreve preocupado com a previsão que anunciava tempo ruim e chuva para toda a semana. A minha previsão era bem diferente, também mostrava tempestades na segunda e terça-feira, mas anunciava melhora do tempo na quarta-feira e seguia boa a partir de então. Expliquei que já tinha colocado o minha vida profissional na reta, ameaçado gerente e tudo e não tinha volta. Eu iria com ou sem ele. No fim, com as passagens compradas não dava mais pra voltar atrás. Meu college não me entregou as cartas de férias a tempo e como, então, resolvi sair do Reino Unido sem carta de férias nem nada, esperando na volta contar com a simpatia dos fiscais da imigração pra entrar em Londres sem problemas.
Monday, 24 Ago 2009
Comprei a passagem a dois dias atrás e como a pressa é inimiga do bolso, perdi várias ofertas e acabei pagando um preço até 40% mais caro por tickets de última hora. Meu avião saía de Londres às 6 da tarde e meus planos de comprar equipamentos no domingo foram por terra quando meu chefe pediu pra eu começar mais cedo. Como eu vou recusar depois de ter conseguido um “boi” de ficar ausente uma semana?! Claro chefe, eu venho. Ficou tudo pra ser feito hoje. De quinta até agora eu chegava em casa depois da meia-noite e ainda passava um bom tempo no computador. Dormia umas cinco horas e o que sobrou na segunda-feira foi um tenso zumbi correndo pelo centro da cidade de loja em loja comparando preços e materiais. Voltei pra casa já era mais de duas da tarde. Só deu tempo de arrumar a mochila e sair correndo com a Vi (minha namorada) pra comer um lanche e ir pro aeroporto. Cheguei em cima da hora do check-in. Obviamente que eu não consegui comprar tudo e várias coisas ficaram de ser compradas em Chamonix, mesmo sendo previamente advertido pelos vendedores londrinos de que as coisas lá seriam bem mais caras – o que não se mostrou exatamente verdade (lógico).
Meu vôo saía de Londres às 18h30, fazia conexão em Zurique onde eu teria que trocar de aeronave chegando finalmente em Genebra às 23h30. Como a última van pra Chamonix partia também às 23h30, eu teria que “dormir” no aeroporto e chegar apenas no dia seguinte. Isso foi proposital porque a outra opção seria sair de Londres bem mais cedo, sem tempo de comprar nada nem arrumar mala e deixar pra comprar tudo em Chamonix, sem saber o que eu iria encontrar lá. C’est la vie. Chegamos debaixo de forte chuva. O avião deu uma boa balançada antes de pousar. Uma incrível tempestade de raios fazia o céu brilhar como uma lâmpada fluorescente com problemas no reator. Incrível. Por um momento fiquei apreensivo com o futuro da próxima semana, mas lembrei que ainda era segunda-feira e os dados sequer foram lançados.
O aeroporto de Genebra estava às moscas quando cheguei. Não passei por revista, nem nada. Desci do avião, peguei minha encharcada mochila na esteira e foi isso. Bem vindo a Suíça. Bem diferente da paranóia londrina. Dei uma volta pra sentir o clima do local, em poucos minutos os últimos coffee-shops fecharam e não havia lugar nem pra comprar uma garrafa d’água. Sorte que durante o vôo ganhamos uma garrafinha que eu guardei na mochila. Procurei um lugar para me encostar e obviamente o sofá mais confortável já estava ocupado. Passei na frente de um restaurante fechado e reparei numa pessoa dormindo sob um isolante debaixo de uma mesa. Eu não tinha isolante nem nada, mas achei o lugar bem reservado. Tirei meu moletom da mochila, estendi no chão e dormi ali mesmo. Algumas horas depois as luzes do saguão se apagaram, o fluxo de pessoas passando no hall diminuiu e eu consegui finalmente acalmar minha mente e dormir um pouco.
Tuesday, 25 Ago 2009
A algum tempo eu ouvia um zumbindo no pano de fundo do meu sonho. Não muito tempo depois de meus ossos conseguirem abraçar o duro chão do restaurante do aeroporto entendi da onde vinha a tal música, - Excusez-moi Monsier – acordo com o faxineiro pedindo licença em francês para aspirar o canto. Seis da manhã. Não ia mais conseguir dormir e o jeito foi me entreter assistindo as lojas abrindo novamente, e o grande número de pessoas apressadas indo e vindo pelos corredores do aeroporto. O dia amanheceu bonito, muito diferente da revoltada noite anterior. Ainda faltavam 3 horas pra van chegar. Uma espera ansiosa. Fui até um supermercado ao lado do aeroporto e montei três grandes sanduíches de atum. Quando o relógio marcou nove horas, comecei a ficar preocupado. Fui até o balcão de informações perguntar a respeito da empresa, e o rapaz me disse que o motorista costumava reunir as pessoas por ali mesmo. Na dúvida, fui até o ponto de táxi me informar sobre onde as vans costumavam estacionar e fui até o local indicado. O motorista havia acabado de estacionar. Troquei rápidas palavras com o simpático rapaz e não achei surpresa que ele, ao saber que eu era brasileiro, arriscar conversar comigo numa maluca mistura de português, italiano, e espanhol. Ele me explicou que Genebra tem uma grande comunidade portuguesa, mas ele era de Kosovo! Aqui nada mais me surpreende. Fiquei na van esperando ele ir buscar o resto dos passageiros dentro do aeroporto. Saímos com uma hora de atraso. Sol forte, céu azul.
A viagem de Genebra a Chamonix levou aproximadamente uma hora. Saindo da cidade um cenário magnífico de montanhas e coníferas se descortinava sob meus olhos. Rara beleza. De manhã o Walker havia me enviado uma mensagem com o endereço do hostel onde estava hospedado e a van me deixou bem na porta, ótimo porque assim pude evitar uma baita subida. Meu amigo ouviu-me agradecendo o motorista em português e apareceu na janela com uma cara curiosa. – Caramba, o nego fala português?! Risos gerais. Como foi bom ver mais um rosto conhecido, um amigo depois de tantos meses. Subi as escadas do hostel, simples, aconchegante, e o que é melhor, baixos preços. A simpática senhora que comandava tudo era de uma doçura impressionante. Fomos até o refetório nos debruçar sobre um grande mapa que o Walker havia comprado. Um mais ansioso que o outro, milhões de assuntos pra por em dia, foi até engraçado. Com sacrifício dei-lhe dianteira na conversa, pois ele havia chegado na cidade um dia antes e já tinha tido tempo de bolar um série de planos de ataque. O resto das velhas novidades trataríamos durante a longa subida.
A princípio a idéia era fazer escalada em dois dias. No primeiro dia subiríamos direto até o segundo hut, Aiguille Du Goûter, 3817m de altitude. Acordaríamos bem cedo, iríamos até o cume e voltaríamos para Chamonix a tempo de mais uma escalada. O Mont Blanc era a minha primeira alta montanha. Aclimatação, mal de atitude e farta alimentação era algo que eu só tinha lido a respeito. No período que antecedeu a viagem eu estava trabalhando mais de 50 horas por semana, comendo no restaurante quase todo dia, e dormindo pouco. O Walker já esteve algumas vezes a mais de 4000m, e escalou pelo menos uma meia dúzia de montanhas, mas estava a 2 meses fazendo canyonings e cavernas pela Europa e também não devia estar lá muito descansado. Sua recente dieta era basicamente composta de série de excursões aos MacDonald’s europeus. Tínhamos a possibilidade de sair naquele dia ou no próximo. Isso ficaria em função da hora em que terminaríamos de comprar todas as coisas e enfiar tudo na mochila, além é claro do tempo que não estava colaborando muito. O Mont Blanc estava envolto em densas nuvens e a previsão para o dia de hoje era de muita chuva e vento.
Chamonix é uma simpática cidadezinha encravada no meio das montanhas, teleféricos conduzem os turistas para todos os lados até seus altos picos onde além de belos panoramas existem diversas pistas de sky que também servem como rampas de vôo para os paraglyders que podem ser vistos o dia todo colorindo o céu da cidade. Lindo, desde que eles não arborizem, o que acontece com bastante frequência. Cachoeiras, geleiras e incríveis visuais se descortinam pelo vale, um encantador pano de fundo que preenche o espaço entre as casas e prédinhos que compõe essa cidade que transpira esporte. Uma profusão de pernas e corpos torneados, mochileiros, escaladores, todos desfilando por simpáticas ruas escoltadas por um cem número de lojas de aluguel e venda de equipamentos de montanha, restaurantes, adereços turísticos e cartões postais. Para todos os gostos e bolsos. O custo dos equipamentos é caro, porém procurando bem pode-se encontrar coisas em geral mais acessíveis que nas lojas londrinas.
O Walker já tinha pesquisado em todas as bocadas e me levou ao lugar onde segundo ele poderíamos comprar e alugar equipamentos há um preço mais acessível. Eu precisava comprar além de óculos, polainas, e uma balaclava, demais itens básicos de camping como fogareiro, panela, isolante e saco de dormir. Como pretendíamos ficar nos huts e o preço dos sacos de dormir eram absurdamente caros, resolvi comprar um isolante bem fininho e um saco para apenas 5ºC. Em caso de frio eu completaria o resto com minhas roupas. O Walker ainda tinha esperança de conseguir montar sua pequena barraca lá no alto, mas também cogitava ficar no hut caso isso não desse muito certo. Alugamos piolet, botas e crampons. Também compramos alguns pacotes de “comida de astronauta”, risoto vegetariano, pasta carbonara, e um sei lá o que com queijo, basta jogar água quente, esperar 10 minutinhos e mandar pra dentro. Simples e prático. Saímos da loja quebrados e com enormes e pesadas sacolas cheias de tralha. Próxima parada, supermercado. Chocolates, macarrão instantâneo, sopa, cereal... Uma compra básica em Chamonix sai bem mais caro que em Londres.
O tempo estava bem fechado, e por conta do horário (já eram três e meia da tarde) resolvemos deixar pra sair no dia seguinte bem cedo. Não havia motivo em chegarmos ensopados em qualquer um dos lugares, e a previsão para amanhã – apesar de eu não acreditar - também era de chuva. Batemos um MacDonald’s, e fomos pro hostel arrumar as mochilas. Os quartos compartilhados não estavam cheios, mas havia vários escaladadores, a maioria de rocha. O Walker me apresentou três ingleses que acabavam de voltar do Mont Blanc, eles já estavam em Chamonix à algumas semanas, relativamente aclimatados e tentaram fazer o cume em apenas um dia, mas desistiram nas primeiras horas depois do Aiguille Du Goûter por conta do forte frio e cansaço. Vale levar em conta. Ainda voltamos pra cidade usar Internet, comprar mais algumas coisas pra comer a noite e capotamos. Havia dias que eu não dormia direito.
Wednesday, 26 Ago 2009 - #Day 1 - "Ascenção"
Acordamos cedo e em poucos minutos descemos a rua em direção ao ponto de ônibus para Les Houches. Pegamos um cartãozinho no hostel que nos permitia livre transporte nos ônibus da cidade. Cerca de quarenta minutos depois chegamos ao teleférico. O tempo estava ótimo, sol e poucas nuvens no céu. Exceto pela condutora, estávamos sozinhos no bondinho. Subimos suavemente, sempre rente à íngreme encosta coberta de pinheiros. Fomos os primeiros a chegar ao alto da montanha e logo descobrimos o porquê, o trem que nos levaria até Nid d'Aigle chegaria apenas dali uma hora. Havia esfriado bastante. Aproveitamos para usar um toalete com água corrente pela última vez, e o Walker tomou um chocolate quente. O teleférico começava a trazer os próximos mochileiros que iriam pegar o trem conosco e em pouco tempo a pequena estaçãozinha de madeira ficou cheia de gente. Um desfile de línguas, marcas e equipamentos. Fiquei encanado porque nossas mochilas eram bem maiores que a do resto do pessoal. Lógico que nem todo mundo sobe a montanha para tentar o cume, muita gente vai até o primeiro refúgio disfrutar da vista, ou mesmo fazer trekkings alternativos, mas de qualquer forma eu fiquei repassando várias vezes na cabeça tudo o que levava nas costas tentando descobrir se haveria algo que não fosse essencial.
Muita gente faz o percurso do trem a pé, hoje eu acredito que seja legal não só pela vista, mas também porque propicia uma melhor aclimatação e a economia de 13 euros. Como tínhamos pouco tempo resolvemos acelerar de trenzinho, ele sobe por vinte minutos e nos deixa bem no começo da trilha, economizando algumas horas de caminhada. Estávamos rodeados por belíssimas montanhas, várias plaquinhas indicam uma série de trekkings pelo área. Rapidamente o pessoal esvaziou os dois vagões e vários grupos se formaram e seguiram como formigas apressadas montanha acima, quase todo em direção ao primeiro hut, Tete Rousse. Fomos atrás de todo mundo, num ritmo bem mais lento. No começo eu disparei montanha acima, mas depois resolvi me juntar ao Walker porquê de um jeito ou de outro, eu sempre parava para esperá-lo, e acabava ficando com frio. Também mais adiante a estratégia dele se mostraria melhor em nos ajustar ao rápido incremento da altitude. A trilha começou com uma boa subida por um caminho rochoso, depois de algum tempo de caminhada e passamos por um refúgio de alvenaria à nossa esquerda. Uma hora adiante e o caminho fica mais íngreme e inclinada, alguns trechos eram bem estreitos. Já estávamos andando a pelo menos duas horas, zig-zagueando cada vez mais alto pela montanha. Em alguns pontos críticos haviam corrimãos de cabo de aço, mas nada que realmente justificasse uso naquelas condições. Num dado momento a trilha fez uma abrupta curva à esquerda e assim que dobramos a esquina demos de cara com um enorme platô de rocha e gelo cercado por montanhas nevadas. Conforme subíamos a montanha abria-se e nos apresentava novos detalhes e panoramas. Do outro lado do platô, lutando contra a natureza que parece querer jogá-lo montanha abaixo, o enorme refúgio Tete Rousse, pelo tamanho parecia mais um hotel. Nossa trilha subia pelas rochas margeando o platô até que se conseguisse evitar sua parte mais exposta e inclinada, nesse ponto tínhamos que cruzá-lo e continuar subindo a nova parede rochosa que nos confrontava. O refúgio Du Goûter estava encravado no topo nevado dessa parede, podíamos ver uma parte de sua estrutura lá no alto, 650 metros acima de nossas cabeças. Logo abaixo e à esquerda do Goûter, uma rampa muito íngreme de rochas se formava e continuava descendo até o nosso platô, que era na verdade uma continuação mais suave dessa enorme rampa, ela passava à esquerda do Tete Rousse e desabava no vazio lá embaixo. Aquele lugar, quando coberto de neve se transforma numa contínua língua do topo da Goûter até o abismo abaixo de nós. Começamos a cruzar o platô e resolvemos sentar sob uma enorme rocha para vestir nossas cadeirinhas e polainas. Muito frio e ventos fortes varriam o glaciar. No ato um de meus dedos rachou e começou a sangrar. Não tínhamos protetor labial, então os lábios ficam machucados em pouco tempo. O chão era uma mistura de pequenas rochas soltas e escorregadias sob gelo em constante derretimento, vários riozinhos cortavam nosso caminho descendo pelas canaletas do glaciar. Enchemos as garrafas d'água e liguei para casa. Notei que quando eu começava a falar, sentia após alguns segundos uma dificuldade em continuar, eu ficava com a boca mole, como se estivesse grogue. Bem curioso porque apesar disso eu me sentia totalmente normal. A nossa batata Pringles estava com o lacre inchado por conta da pressão, tudo muito curioso. Iríamos começar a escalaminhar um trecho rochoso, possivelmente um 3o grau que nos levaria até o alto, aos pés do hut Du Goûter. Para chegar a esse trecho porém, tínhamos que atravessar a rampa que se formava lá no alto e descia sobre nós, o tempo todo pedras rolavam lá de cima, algumas vezes pedras gigantescas. Uma zona contínuamente sob avalanche. Basicamente você fica de um lado, olhando para a rampa e tentando escutar ou ver algo rolando pra baixo, se estiver limpeza, sai correndo torcendo pra ser seu dia de sorte, até que chegue ao outro lado novamente abrigado. Um sprint nervoso. Quando chegamos havia um cara que acabara de conseguir escapar de um sério desmoronamento que deixou uma densa fumaça cinza no ar, ele teve que deixar a mochila pra trás e agora estava procurando pela sua máquina fotográfica bem no meio de onde rolavam as pedras! Até gente sem capacete nós vimos. Quando se analisa o potencial para tragédias e o número de pessoas que efetivamente morrem por ano na montanha, nota-se que tem muito anjo da guarda fazendo hora extra. Mais ao alto e adiante, podíamos ver fila de gente para passar por alguns trechos mais apertados. Como íamos lento, estávamos sempre sozinhos o que era bom. Passamos por um senhor de 70 que descansava numa rocha. Com mochila e roupa das antigas, o simpático velinho respondeu que na nossa idade ainda levaríamos duas horas para o topo, na dele seriam umas três. Depois que ele nos ultrapassou, sumiu de vista. Também conhecemos um pai e mãe escalando com o filho, o filho tinha quase trinta e o casal mais de quarenta. O moleque tinha acabado de voltar do Eigger e Matterhorn e agora iam juntos pro topo do Mont Blanc. Legal ver essas coisas. Levamos cerca de cinco horas pra chegar ao Goûter. No trecho final começou a nevar e esfriar muito. Tentamos manter o ritmo e logo chegamos ao refúgio, estávamos gelados. O vento estava muito forte, e a nevasca tinha realmente se consolidado e caía com força. Não havia qualquer possibilidade de montar a barraquinha do Walker, não tínhamos sequer um espaço pra encostar, o lugar estava entupido de gente. O refúgio Du Goûter é formado por duas sólidas construções de concreto e aço que se debruçam valentemente na borda da parede, com algumas passarelas suspensas além do limite da montanha. A construção da esquerda serve além de alojamento como refeitório, ela possui uma cozinha onde os funcionários preparam e vendem café-da-manhã e jantar, além de comodidades como macarrão carbonara, cervejas e refrigerantes. Uma pequena portinha permite a comunicação com os funcionários, e é também ali que se negocia a hospedagem no abrigo. Uma ante-sala cheia de armários permite que o pessoal deixe as botas e demais tralhas inúteis quando se entra num ambiente aquecido, dezenas de papetes ficam a disposição porque a princípio é proibido entrar de botas no refeitório - isso nunca é respeitado. Um pequeno lance de escadas dá acesso ao restaurante propriamente dito, e a outros alojamentos anexos. A construção da direita é um prédio único, conectado ao alojamento-refeitório por uma estreita passarela metálica, é o maior alojamento do Goûter. Ele também possui uma pequena ante-sala onde se pode deixar as botas e calçar uma papete. Quando chegamos, foi ali que nos esprememos com as outras pessoas que chegavam e buscavam abrigo. Foi um momento tenso. Eu não tinha idéia de que havia um refeitório e agente não entendi nada do que estava acontecendo. Abrimos a porta do alojamento e vimos um mar de gente, todas as camas ocupadas, pessoas entrando e saindo, um clima caótico. – Caramba!, pensei. Vamos ter que nos espremer aqui no cantinho dessa ante-sala e dormir sentado... Lá fora algumas pessoas encapotadas lutavam para derreter neve, mas o vento estava forte demais e nevava sem parar. O Walker havia sentado em cima da mochila pra evitar o chão molhado da tralha do pessoal, e começou a falar que estava muito cansado. Falou que não tinha energia e ficou ali no canto, inerte. Não se mexia, nem reagia. Fiquei preocupado. Tentei me acalmar e atacar as prioridades, a primeira delas era comida. Me encapotei e como que por instinto, enchi a panela com neve e fui esquentar água. Preparei duas comidas de astronauta e dei uma pra ele. Ficamos abrigados na ante-sala, uma agitação insana, tudo molhado, uma bagunça. Ficamos ali espremidos, comendo e tentando pensar o que fazer. Conversei com um sujeito muito simpático, ele falou que era guia e que achava que dava pra dormir no refeitório. O Walker comeu pouco e continuava em profunda exaustão. Agora agente não tinha mais água, mas pelo menos a tempestade já havia passado. Falei pro Walker ir até o restaurante arrumar um lugar pra gente dormir, ele iria levar meu isolante e saco de dormir e reservar um espaço pra mim. Eu iria ficar mais um pouco e derreter neve. Ele hesitou, depois se levantou meio cambaleando e saiu porta afora. A maioria das pessoas havia ido dormir e o lugar estava bem quieto. Fiquei quase uma hora lá fora pra encher duas garrafas de um litro e meio, um trabalho de monge. Assim que acabei fui pro refeitório ver o que tínhamos conseguido.
Logo que entrei na ante-sala do refeitório dei de cara com duas mulheres e um rapaz sentados num banco, tomavam chá e sussurravam para não atrapalhar o pessoal que tentava dormir. Tirei minhas botas e subi de meias as escadas, a sala estava tão escura que precisei contrariar o anúncio que pedia pra não acender lanternas durante o período de sono. Eu usava uma das mãos para quebrar a forte luz e não cegar ninguém, e a outra para tatear no escuro e evitar pisar num pé, braço ou cabeça das dezenas de pessoas que se apinhavam por ali. Mesas, bancos, chão, um mar de corpos enfiados em seus sacos de dormir buscando algumas horas de descanso. Fiquei por vários minutos tentando encontrar o Walker, e nada. Achei um isolante da mesma cor do meu, mas não reconheci o saco de dormir, porém, como estava vazio e eu nunca tinha visto meu saco de dormir aberto, achei que era o que ele tinha preparado para mim e me enfiei dentro. Mal preguei os olhos e vem uma das garotas que antes tomava chá me dizer que eu estava na “cama” dela. Meu Deus. Não vou conseguir achar o Walker nunca, pensei eu. Pedi desculpas e tentei explicar a situação. Ela se deitou, e lá fui eu de head lamp em punho tentar achá-lo novamente. Em vão, desisti. Achei um longo banco de madeira perto da entrada, bem no canto da parede, e como estava totalmente vestido, não iria passar assim tanto frio nem ficar doído demais. Usei meu anorak como travesseiro e me encostei ali mesmo. Cinco minutos depois, um cara mais acima, pertinho de mim, dá uma tossida profunda, um misturo de um urro, com escarro, saído bem do fundo mesmo, começa a tossir e vomitar num balde que estava pendurado do lado da cama. A julgar pelo som do balde, ele já devia estar assim há um bom tempo. O cara parecia ter fortes contrações estomacais que saíam em uma mistura de urro e tosse, e aí ele vomitava. Desagradável, e um cheirinho pra lá de insuportável. A cada tossida, um comichão no refeitório pedindo silêncio. O cara parecia tossir cada vez mais. Não ia ter jeito de ficar ali do lado. Ao levantar do banco pra procurar a próxima cama, achei meu amigo bem embaixo da mesa sob a qual dormia o cara que estava vomitando. O Walker me contou que o cara estava passando muito mal fazia horas e o pessoal só ficava de risada, sem dar apoio algum. Logo algum dos funcionários resolveu abrir a portinha da cozinha e falar pro cara ir pra fora dar uma respirada porque ele estava acordando todo mundo. Cobri meu rosto com meu gorro e tentei dormir.
Thursday 27 Ago 2009 - #Day 2 - "Aclimatando"
Difícil estimar quantas horas consegui dormir. Poucas com certeza. Logo que o rapaz que vomitava sem parar deixou o restaurante para tomar um ar, o ambiente ficou mais calmo. Silêncio era impossível. Quando dezenas de pessoas muito cansadas e sofrendo de altitude se juntam para dormir, não dá para exigir silêncio. Enquanto alguns mais afortunados roncavam num sono profundo, o resto era um coro de engasgos, tossidos e fungadas, muito difícil pegar no sono. Poucas horas depois começou um festival de alarmes eletrônicos. Duas da manhã, duas e quinze, duas e meia. Lentamente e depois num ato contínuo todos vão se levantando, ligando suas head lamps e em questão de minutos a luz do restaurante se acende, e o lugar é inundado por pessoas que vem tomar o café da manhã. Café da madrugada, na verdade. As luzes se acendem, a portinha da cozinha se abre e o café começa a ser servido. Como estávamos embaixo da mesa, ainda enrolamos por mais alguns minutos, mas logo fomos rodeados por dezenas de pés e pernas das pessoas sentadas nos bancos a nossa volta e não teve jeito. - Vamos para as camas, sugeriu o Walker, esse pessoal está saindo agora e elas devem estar vazias. Calcei minhas botas e enfrentei o frio da passarela que conduzia até o outro alojamento. De fato, diversas camas estavam vazias. Capotamos e só fomos acordar às 8 da manhã com um rapaz pedindo pra todo mundo sair. Eles iam limpar o lugar e depois a porta era trancada só sendo aberta à tarde, paras as pessoas que pagaram. Cruel. O Walker me disse que ainda estava muito cansado. Fomos pro restaurante, ficamos deitados nos bancos, nas mesas, vendo as nuvens passar pela janela. Eu sentia uma leve dor de cabeça, mas estava relativamente recuperado. O hut estava bem mais calmo agora, pois a maioria das pessoas havia partido pro cume, abaixo de nós avistávamos novos grupos de pessoas subindo do Tete Rouse em nossa direção, muitas tentariam o cume direto, sem parar no Goûter.
Bem depois das oito da manhã alguns poucos grupos ainda estavam saindo para o cume. O pessoal estimava de seis a sete horas entre ir e voltar do cume. Quando o relógio marcou onze da manhã, o Walker me disse que estava se sentindo melhor. O tempo estava ótimo, então resolvemos sair pro cume, mesmo um pouco tarde. Finalmente pude ter uma visão completa do Goûter e ter uma idéia de onde estávamos, um cenário magnífico coberto por uma neve fofinha da última tempestade. O glaciar atrás do Refúgio parecia querer empurrá-lo no vazio, para fora da borda rochosa. Os responsáveis pela manutenção estão em constante batalha com a natureza que tenta retomar o que é seu por direito, um exemplo claro é o espaço não muito maior do que um metro entre a parede do refúgio e a parede de gelo da montanha, alguém é responsável por manter essa “área”, retirando a neve quando ela se acumula. A montanha não dá nada, tudo tem que ser trazido lá de baixo de helicóptero. Entre as duas construções há uma pequena área comum, uma plataforma mais ampla que dá acesso à subida para a área de camping no alto da montanha, esse lugar fica o tempo todo ocupado por escaladores subindo ou descendo, ou apenas gente buscando o calor do sol, todos disputam o uso de um único comprido e estreito banco de madeira. O pessoal às vezes cozinha embaixo desse banquinho para proteger os fogareiros do vento forte. A neve que se acumula ao lado, entre o telhado do alojamento e a montanha propriamente dita, é perfeita para fazer água.
Vestimos nossos equipamentos, deixamos a mochila bem leve, apenas com algumas comidas, um abrigo extra e água. A saída do Goûter é feita por uma subidinha bem inclinada que leva ao topo da montanha, alguns metros mais adiante e há um pequeno platô que serve como a área de acampamento do refúgio. Do alto pudemos ver o caminho a seguir, uma longa subida, diga-se de passagem. Os grupos que avistamos em cima da próxima crista, ao longe eram apenas minúsculos pontinhos, estavam a pelo menos 3 horas de subida íngreme. O Walker falava a todo o tempo que ainda estava descansado e ficava me perguntando sem parar como eu estava. Comecei a ficar irritado. Eu havia dito que eu estava bem, apesar de sentir vez ou outra que minhas coxas estavam bem cansadas. Começamos um breve bate boca sobre as possibilidades de insistirmos na subida ou não. Eu meio sem paciência disse que eu me sentia bem, mas éramos uma dupla e que se ele não estava 100% não havia porque insistir, seria melhor agente voltar, poupar energia, descansar e tentar no dia seguinte, visto que a previsão para amanhã também era excelente. Voltamos pro hut. Confesso que fiquei meio contrariado, tomado pela síndrome do cume, mas no dia seguinte essa escolha se mostraria sábia. Tiramos os equipamentos e deixamos a mochila pronta para a madrugada seguinte, até com as garrafas d'água dentro, seria apenas acordar e subir. Ao contrário da primeira tentativa, dessa vez iríamos levar apenas a minha mochila com tudo dentro porque a do Walker não é cômoda. Ele também tem se queixado bastante de dores nas costas (o coitado tem escoliose, lordose e mais uma outra “oze” sinistra que depois de muito tempo com a mochila no lombo torna tudo um tormento).
Quando terminamos de arrumar a tralha testei a porta do alojamento, mas ela ainda estava trancada, então nos arrastamos até o restaurante. Eu agora também comecei a me sentir cansado. O refeitório estava cheio de gente que acabara de voltar do cume, todos pareciam exaustos. Muitos esperavam por um macarrão, ou apenas queriam um lugar mais quente para se recuperar da longa manhã. O Walker sugeriu de perguntarmos se havia camas para essa noite. O rapaz que me atendeu, um dos que ficavam no lado VIP da cozinha preparando os almoços e cafés, explicou que o custo do pernoite era de 27 euros, e todas as camas estavam reservadas, mas ficou de caso houvesse alguma desistência, tentar nos encaixar. Mesmo sem cama o custo pra dormir no chão do restaurante era o mesmo. Sem saber, dormimos na faixa na noite passada, mas agora que tínhamos nos mostrado, teríamos que pagar de um jeito ou de outro. Compramos cada um uma porção de macarrão que eu mesmo enjoado me forcei a comer. Bem ao nosso lado sentou a família que conhecemos na subida do dia anterior, estavam voltando sem sucesso do cume. O rapaz havia se sentido muito mal e tiveram que desistir. Ele estava com os olhos bem vermelhos, quase sangrando, um sinal claro de má aclimatação. Tentariam de novo amanhã. O Walker foi até a cozinha perguntar se, como já havíamos pago, não seria possível usarmos as camas de um dos alojamentos apenas para darmos uma descansada durante à tarde, antes de todo mundo voltar. O francês enrolou por meia hora sem motivo algum, até resolver abrir a porta e nos deixar deitar num dos dormitórios anexos ao refeitório. Lembro que durante o sono entrou um rapaz deixar umas coisas no quarto, eram três horas da tarde e ele nos contou que o guia dele os estava levando agora pro cume, eles acabavam de chegar do Tete Rousse. Ele saiu e voltamos a cochilar. Refletindo agora, se esse cara estivesse apenas com uma mochilinha leve, sem problemas iria até o cume e voltaria antes do anoitecer, pois estaria bem menos cansado do que os malucos que sobem com 15 quilos nas costas. Filosofias diferentes.
Mais algum tempo e nosso alojamento foi de novo ficando agitado e tivemos que sair. Pela metade da tarde eu comecei a me sentir enjoado. Algumas horas depois eu estava bem mareado mesmo. O alojamento da construção separada do refeitório é bem mais silencioso, e como a porta agora estava novamente destrancada, resolvemos nos esconder por lá. Em repouso eu me sentia bem, mas era só levantar que passava mal na hora. Houve um momento, quando descia as escadas para ir até o banheiro, que por pouco não vomitei. A dor de cabeça era constante, tomei dois comprimidos de paracetamol, mas sem efeito. Mal de altitude sentido na pele, pensei. Nada grave, mas incômodo. Passamos o dia deitados, levantando apenas pra comer, tomar água e dar uma volta até o restaurante. Depois de algum tempo eu não conseguia mais ficar na cama. O quarto estava começando a ficar agitado de novo. Muita gente chegando lá de baixo e outros que acabavam de voltar do topo. Fiquei na passarela observando as pessoas mais abaixo escalando em direção a nosso hut. As rochas ainda estavam congeladas da tempestade do dia anterior e muitos usavam crampons. Ouvi um inglês conversando alegremente com alguém ao celular, confirmando que a o próximo dia seria de sol. Impressionante mas a minha previsão de uma semana atrás estava se mostrando absurdamente precisa. Consegui falar com a Vi, mas o sinal do celular (pelo menos do meu) é bem ruim. Fico sem sinal por horas e depois ele reaparece com força. Cada vez que o pico é envolto por nuvens a recepção também desaparece. Porém, várias vezes que eu não tinha sinal algum, um monte de gente falava alegremente ao telefone...
A maioria das pessoas chegando do cume pareciam bem exaustas. Ouso dizer que a grande maioria não chegaria ao cume sem um guia para literalmente rebocá-los montanha acima. Encontrei o senhor que vimos no dia anterior. Ele parecia muito cansado no banco do restaurante, deitado de barriga pra cima respirava profundamente. Acabava de voltar (sozinho) do cume, estava tomando um fôlego pra descer direto. Impressionante que alguém naquela idade, com cara e corpo de Papai Noel, faça sozinho tudo aquilo, e com muitas horas de vantagem na frente de todo mundo! Impressionante mesmo. Logo o Walker acordou e veio se juntar a mim. Fiquei um longo tempo ali debruçado sobre a mesa, apenas observando as montanhas. Preparamos uma janta no fogareiro e deitamos cedo.
Refletindo sobre os grupos e abordagens que vimos, acho interessante fazer o cume em menos dias, porém ficava claro que a grande maioria que o havia feito, tinha chegado no limite, e nós tínhamos uma proposta diferença. Preferimos fazer a coisa mais lentamente, aclimatarmos melhor e terminar todo o episódio em boas condições físicas. Numa emergência, uma nevasca, qualquer coisa que acontecesse, teríamos que contar apenas conosco para resolver a situação, e toda energia seria importante. O pessoal do hut não tem controle algum sobre quem sobe ou desce a montanha, se nos perdêssemos ou caíssemos numa greta, se ninguém nos visse, jamais perceberiam que não havíamos retornado. Isso é certo. Bem aclimatado e preparado fisicamente daria sem problemas pra subir direto do Tete Rousse, e fazer os três picos num single push. Quem sabe numa próxima vez...
Friday 28 Ago 2009 - #Day 3 - "Cume"
Agora com cama confirmada, fomos um dos primeiros a entrar no dormitório, que logo se encheu de gente. Do meu lado havia um cara que roncava e do outro um idiota com uma lanterna no pescoço que se acendia e dava na minha cara a cada vez que ele se revirava na cama, um inferno. Como de praxe, gente entrando e saindo, tossindo e sussurrando a noite toda. Demorei horas pra dormir, até cheguei a pensar que ia passar acordado até o despertador tocar. Insônia é um outro sintoma de má aclimatação. Talvez eu seja um dos sorteados e meu corpo demore um pouco mais para aclimatar, ainda é cedo pra dizer porque essa foi minha primeira vez em alta montanha. As duas da manhã começou a orquestra de despertadores e head lamps. Todo mundo se levantando, colocando suas roupas, um falatório geral. Vez ou outra um - Shhhh pedindo silêncio dos que ainda tentavam a todo custo dormir no meio da agitação.
Nós havíamos combinado de sair um pouco mais tarde porque a head lamp do Walker havia morrido e ele achava arriscado ficarmos muitas horas no escuro com apenas duas lanternas, sem uma de emergência. Dava para ouvir fora do dormitório o som metálico dos crampons roçando o chão, mais grupos partindo. Às cinco horas foi a vez do meu despertador tocar, saímos para a ante-sala, apenas duas outras pessoas ainda dormiam no enorme dormitório. Lá fora o vento assoviava freneticamente, assisti a um trio deixar o alojamento e sair montanha acima. Como estávamos praticamente sozinhos resolvi burlar a lei do alojamento e acendi o fogareiro ali dentro mesmo, preparei um arroz vegetariano e mandei bala. Forrar bem o estômago porque só Deus sabe a hora do jantar... Logo vestimos os equipamentos, nos encordamos, e saímos encarar o frio. Ainda estava negro, nem sinal do sol que esperávamos estar dando seus primeiros sinais de vida por agora. Milhões de estrelas cintilavam sob nossas cabeças. De longe avistávamos dezenas de luzinhas enfileiradas no alto da montanha, escaladores que haviam saído horas antes e agora pareciam enfileirar-se na longa subida, a impressão era de um congestionamento nas alturas.
Subimos a pequena e pisoteada rampa que levava a crista e logo passamos pelo breve platô cheio de barracas de camping. Podíamos ver as luzes de Chamonix lá em baixo, na imensa distância que nos separava. A cidade ainda devia estar dormindo, pensei. Expostos no topo, recebíamos o vento com força total, Nós iríamos prosseguir pela crista da montanha até um grande platô onde então se iniciava uma longa subida até a próxima crista. Ao longo do caminho margeávamos profundos buracos, estávamos literalmente caminhando por entre as gretas, cruzando inúmeras pontes de gelo.
Começamos a serpentear a longa encosta, a trilha estava bem marcada das dezenas de grupos que seguiam à nossa frente. Mais ao alto, algumas horas de distância nos separavam de três outros pontinhos de luz que julguei serem o trio que vi partir mais cedo. Num certo momento percebi que eles haviam parado e então um pontinho começou a voltar em nossa direção. Continuamos a subir sempre bem perto de gretas e cavernas de gelo, até que o ponto virou um vulto e logo nos encontramos. O rapaz disse que estava com uma forte dor de estômago e teve que desistir. Estava voltando sozinho para o hut. Continuamos a subir a encosta por mais algum tempo, e logo o dia começou a clarear, o negro tornou-se um profundo azul escuro, então rosa e dourado. Nuvens se formavam a nossa volta, estávamos literalmente acima delas, uma sensação fantástica. Paramos várias vezes para tirar fotos e admirar o visual, sem pressa. Aproveitávamos ao máximo a oportunidade de estar naquele lugar de imensa beleza. Para mim, tudo era novo e mágico. A neve estava em excelente condição e permitia avançarmos sem dificuldades. Levamos bem mais de uma hora até alcançarmos o topo e à essa hora o céu já estava bem claro. Caminhamos mais algum tempo por um longo platô que logo inclinou-se suavemente, e dali pudemos ter a dimensão do resto do trajeto que ainda nos faltava. Uma imensa descida estendia-se até novamente aplainar-se e dar início a parte final, uma subida pela crista desse pico que dava acesso ao cume. Podíamos ver os vários grupos de formiguinhas humanas, cada qual num diferente estágio do trajeto, várias já voltando. Mais uma boa hora de caminhada e chegamos ao pé da longa subida final. Podíamos ver a nossa esquerda o hut Vallot, existe um banheiro ali em péssimas condições e se recomenda o uso desse local apenas em caso de real emergência, mas claro que não é bem isso o que acontece. O sol já surgira por detrás das montanhas e começava a fritar a nuca, enquanto o vento frio cortava e queimava o resto que estava exposto, da ponta do nariz e das orelhas as bochechas. Paramos para passar novamente protetor solar, comer alguma coisa e tomar água porque o trecho final ia ser puxado. Eu estava começando a ficar cansado e o peso da mochila aumentava exponencialmente à medida que ganhávamos altura. Vários rostos familiares passavam por nós já voltando pro Goûter, gente que havia saído do hut ao menos duas horas antes de nós e agora seguiam caminho oposto. Algumas pessoas se lembravam da dupla de brasileiros e nos saudavam. A subida até o topo parecia inclinada, mas não tão longa, porém as figuras humanas lá no alto diziam o contrário, a subida era longa e o cume gigantesco, por isso a impressão de estarmos perto e perdermos a noção real da distância. Já estávamos a mais de 4000 metros e pelo menos para mim, tomar fôlego ficava cada vez mais difícil. O Walker seguia na frente e eu tentava a todo custo manter o espaço entre nós.
A neve estava bem fofa e porosa, uma impressão de estar andando sob areia, sempre escorregando para trás. O avanço ficou bem complicado, tínhamos que ir com cuidado, sempre tentando achar apoio seguro para os crampons, isso ia drenando nossa energia. Conforme ganhávamos altura a subida ficava mais exposta e o abismo mais vertiginoso. Agora numa situação de queda as coisas seriam complicadas, poucas condições sequer de se segurar naquela neve farelenta. Eu ficava concentrado o tempo todo em encaixar cada passo com precisão, sequer prestava atenção a altura ou algo que não fosse meu caminho. Não havia sequer espaço para nervosismo ou preocupação. Era uma tarefa de concentração absoluta. O meu ritmo começou a baixar e o Walker, talvez excitado com a aproximação, começou a quebrar a nossa piada do 30/1 (30 minutos de descanso para um minuto andando) e acelerou o passo. Eu constantemente precisava parar para tomar fôlego. Não sentia um cansaço físico, era algo diferente, uma falta de ar, uma dificuldade em recuperar o ar dos pulmões. Várias vezes cruzamos com grupos descendo e esses momentos eram críticos, todos se espremendo nas profundas marcas de pegada deixadas pelas dezenas de escaladores, tentando ao máximo não se aproximar da borda do gelo que conduzia ao vazio. Em vários momentos o Walker esticava a corda, me forçando a continuar ou acelerar o passo porque o lugar era estreito demais para pararmos descansar. A mochila agora pesava toneladas. Passando o monte Bosser a coisa fica estreita mesmo. Caminhávamos na crista da montanha, dava pra ver pela pequena abertura dos buracos no gelo a nossa a volta, as profundas gretas gigantescas pelas quais íamos traçando nosso caminho. Mais um pouco caminhando e eu de novo gritava - Stop! e parávamos por alguns segundos recuperar o fôlego, sequer nos sentávamos e já seguíamos em frente.
A cada hora o cume parecia mais perto, e mais longe. Subíamos e subíamos e ele sempre parecia se aproximar, mas nunca chegávamos. No trecho final, faltando apenas algumas dezenas de metros eu tive que descansar mais uma vez. Estávamos muito perto, mas eu não tinha energia pra seguir direto. Levantamos e demos o sprint final. Passo à passo, não sei em que momento tomei consciência do fato, mas lágrimas começaram a escorrer dos meus olhos. Eu chorava inexplicávelmente. Chegamos ao topo da montanha, um amplo e plano platô. Havia mais três alpinistas que haviam chegado logo à pouco e eles se abraçavam e riam. Eu só chorava. Uma explosão de adrenalina e realização que é impossível traduzir em palavras. Nunca imaginei que eu iria chorar ao chegar, mas era algo que eu realmente não controlava. Abracei o Walker, nos cumprimentamos e notei que ele também chorava. Ficamos alguns minutos como duas crianças nos batendo e dando risada, nos cumprimentando, tirando fotos, filmando. Tentei usar o celular pra ligar pra Vi, mas infelizmente não havia sinal. Nenhum ponto do horizonte, nada até onde a vista alcançava estava mais alto que nós. Estávamos sob as nuvens, sob todos os outros picos. Uma sensação absurda de pequenez e fragilidade. Não estava ventando, mas fazia muito frio, devia estar por volta de -15º C. Logo os alpinistas começaram a descer para o outro lado da montanha, com certeza iriam fazer a rota dos três picos e descer pelo teleférico. Nessa hora desejei ter trazido as nossas mochilas pra poder voltar também por ali, devia ser lindo. Aproveitamos mais alguns minutos sozinhos no topo do Mont Blanc, embriagados por tamanha beleza, e logo em seguida também começamos a descer pelo caminho em que viemos. Cruzamos um alpinista acabando de chegar sozinho. Não haveria ninguém ali para tirar fotos pra ele, pensei.
Fomos descendo lentamente, baixada a adrenalina precisávamos de atenção redobrada, é na volta que a maioria dos acidentes acontecem. Íamos nos equilibrando na crista e agora o tempo todo olhávamos pra baixo, face a face com as gigantescas rampas que nos transportariam ao abismo num escorregão. A neve fofa proveria poucas chances de nos segurarmos em alguma coisa. Eu andava sempre atento a corda, pois se ela ficasse frouxa e tocasse o chão o Walker poderia tropeçar. Descemos a estreita rampa, inebriados pelo visual. Cruzamos com mais um outro alpinista solitário se dirigindo ao cume. Passado esse trecho mais tenso a descida tornou-se bem fácil e minhas energias voltavam à medida que perdíamos altura. O Walker por outro lado, parecia mais cansado. Logo que o terreno aplainou e começamos a avistar o Vallot ele começou a reclamar de cansaço, perguntei se ele queria parar, mas ele sugeriu chegarmos até perto do abrigo. Mais um trio passou por nós em direção ao cume, caminhavam lentamente e pareciam exaustos. O sol estava alto e queimava, contrastando com o vento frio que não nos permita tirar os anoraks. Nos metros finais o Walker começou a tropeçar, quase se desequilibrou e quando finalmente nos sentamos notei que ele não estava bem. Fiquei preocupado e me lembrei do primeiro dia em que ele simplesmente esgotou. Ainda tínhamos horas de caminhada pela frente. Ele sugeriu entrarmos um pouco no abrigo e dormir um pouco, mas eu insisti para descansarmos ali mesmo, deitados na neve e depois tocar o barco porque ainda tínhamos muito que andar. Tomamos água e ficamos ali contemplando o visual. Um outro grupo próximo a nós também se preparava para voltar e assim que eles se levantaram aproveitei para estimular meu amigo a começarmos. Só de imaginarmos o longo caminho de volta meu coração doía. Depois de algum tempo o vento parou e começou a esquentar muito. Eu já tinha lido sobre sentir calor sob o gelo, mas estar naquele ambiente nevado sentindo calor era pra mim algo até engraçado. Tiramos os anoraks e fiquei surpreso ao notar que eles estavam encharcados de suor. O sistema de camadas era perfeito, eu estava com o corpo seco, porém quando o suor era transportado pra fora e encontrava nosso pobre anorak, era retido e condençava, cruel. Sempre na cola dos caras que saíram conosco, hora os passávamos, ora éramos ultrapassados. Uma dupla passou por todos nós num ritmo frenético, dava até inveja. Minutos depois já haviam sumido atrás da montanha. Incrível. O gelo estralava sob os raios do sol, levamos várias horas até avistarmos o acampamento. Ao passarmos pela crista onde ficavam a área de camping, o gelo já estava poroso e bem perigoso, tudo derretendo. Finalmente, depois de sete horas, baixamos pela inclinada rampa e estávamos de volta ao Goûter. Estávamos exaustos. Tiramos os equipamentos e deixamos as coisas secando ao sol. Fomos até o restaurante comprar um macarrão e eu muito disposto a pagar o altíssimo preço e me premiar com uma coca-cola. Forrado o estômago resolvemos descansar. Eu tenso queria descer direto para o primeiro abrigo, mas o Walker estava bem cansado. Ficamos no debate de descer hoje ou amanhã e resolvemos que iríamos dar um descanso, acordar sem pressa e então baixar. Ele pegou o isolante e o saco de dormir e deitou embaixo da mesa do restaurante. Eu apenas deitei num dos bancos. Meia hora depois despertei. Não ia conseguir dormir. O hut estava bem silencioso, apenas algumas pessoas ainda voltando do cume. Todo mundo já tinha chegado e ido embora. Fui arrumar a mochila e por volta das 4 da tarde acordei o Walker. Meia hora depois começamos a descer as centenas de metros rochosos até o Tete Rousse. Desde o início do dia a enorme rampa de pedra a nosso lado estava em plena atividade, vários desmoronamentos de rochas, blocos do tamanho de uma bola de futebol que ao chocaram-se mais abaixo explodiam em dezenas de menores e perigosos pedregulhos. Outros muito maiores oscilavam quando tentávamos equilibrar um dos pés para conseguir um apoio, agarras saiam na mão. Tudo instável, mas ainda assim foi uma descida tranqüila e prazerosa apesar do cansaço. Viemos conversando, baixando sem pressa. Passamos por 2 outros grupos que subiam para tentar o cume. Atravessamos com facilidade a parte que corta a rampa e é constantemente atingida pelos desmoronamentos, ao chegarmos finalmente ao glaciar aos pés do Tete Rousse, minhas coxas realmente começaram a reclamar do cansaço. O Walker desenbestou na frente, sentia muito forte uma unha encravada e começou a apertar o passo, chegar logo e tentar aliviar a dor. Eu fiquei para trás e fui encher a garrafa numa das canaletas do glaciar. Levamos duas horas pra chegar em Tete Rousse, e teríamos que pagar um pernoite. Estava bem frio e o sol começava a cruzar a cortina de nuvens e se esconder por trás das montanhas. As mesas do refeitório estavam cheias de gente comendo, bebendo e jogando. Por hora não havia espaço nas camas e teríamos que dormir ali no chão, o complicado era que aquele povo não parecia ser formado por escaladores propriamente ditos, ou seja, não tinham hora pra dormir. Turistas jogando cartas e enchendo a cara de vinho. O Walker foi perdendo a paciência, pediu licença e se enfiou no canto entre a mesa e a parede. Eu fiquei no banco esperando um cantinho aparecer, assim que perdi a paciência e resolvi também me enfiar debaixo de uma mesa, o rapaz da cozinha vem nos avisar que surgiram duas vagas e podemos deitar nas camas. Estávamos tão cansados que nem me dei ao trabalho de cozinhar. Comi uma barra de chocolate e capotei. Merecido descanso.
Saturday 29 Ago 2009 - #Day 4 - "Going Home"
Acordamos às seis da manhã em ponto e rapidamente deixamos o hut. Cruzamos o glaciar nos equilibrando sobre as várias pedras soltas que o encobrem e seguimos pegamos a trilha do outro lado montanha abaixo. Estávamos acima e rodeado por alaranjadas nuvens, como que dentro de um grande caldeirão mágico que ia ficando cada vez mais rosado conforme o sol subia no horizonte. Ainda estava bem frio, mas assim que pegamos ritmo o corpo foi esquentando e a escolha de não sair todo encapotado se justificou. Descíamos num ritmo lento, o Walker brigando com a dor nas costas e uma unha encravada que havia deixado seu dedão da cor de um tomate, eu com minhas coxas cansadas.
Por horas não avistamos viva alma até que fomos rapidamente ultrapassados por uma garota que reconheci como uma das funcionárias do Goûter. Ela portava uma mochila bem leve e um bastão de caminhada, em questões de minutos desapareceu montanha abaixo. Invejamos sua agilidade, mas não cogitávamos pressa porque o trenzinho só chegava às nove da manhã, ainda tínhamos mais de uma hora. Continuamos a serpentear a inóspita paisagem rochosa. Cruzamos com dois outros montanhistas com pesadas mochilas, deu dó imaginar o que eles ainda tinham pela frente (na verdade, para cima). Chegamos até a estação e já havia um pessoal por ali na espera. Uma barraca indicava que alguém havia dormir por ali. Logo o trem chegou trazendo novos mochileiros e embarcamos. Depois pegamos um teleférico.
Ao descermos do teleférico descobrimos que o ônibus que iríamos pegar para Chamonix já havia passado e só havia outro dali uma hora. Estava eu a lamentar nossa sorte quando o Walker vê uma van saindo de uma loja e pede carona. Um cara muito simpático nos levou na porta do hostel, ele se chamava Steve, era surfista e fazia grana dirigindo uma van que levava a mochila dos trekkers que faziam o circuito do Mont Blanc para os próximos hotéis, aí os playboys só precisavam andar carregando as carteiras, sem fazer nenhum esforço.
O Walker precisava chegar em Zurique o mais rápido possível, todas as coisas dele estavam lá, assim como também era de lá que saía seu vôo para o Brasil, no dia seguinte. Mal chegamos ao hostel ele já fez a mochila de novo e descemos para o centro da cidade comer algo e correr pra a estação de trem. Quinze minutos depois ele já estava embarcando. Tudo aconteceu tão rápido, impressionante. Voltei lentamente, parei sem pressa admirar as vitrines das lojas e por horas fiquei vendo os corredores que chegavam da Maratona do Mont Blanc, 166 quilômetros de corrida, mais de um dia correndo sem parar. A cada pessoa que chegava os alto-falantes tocavam uma dessas músicas de emoção, a platéia aplaudindo, estimulando. Eu devia estar sensível por tudo o que passamos e a cada pessoa que vencia seus limites meus olhos ficavam marejados. Pessoas de todas as idades, um cara com mais de 60 anos correndo 30 horas, superando-se. Poucas pessoas entendem esses sentimentos, assim como poucas pessoas entendem a razão de tudo o que fizemos. A noite fui tomar uma cerveja com um grego maluco que estava no meu quarto. Dia seguinte acordei sem pressa, fiquei admirando a vista da montanha, o cume ainda parecia tão perto. Glyders coloriam a paisagem. Desci até o centro da cidade, dar uma última olhada em tudo, ainda havia pessoas chegando da ultra maratona. Fiquei pasmo. Andando pelas ruas encontrei algumas lunetas estratégicamente focadas no topo do Mont Blanc, fiquei sem fala ao poder ver várias formiguinhas lá em cima em direção ao cume. Ontem eu era uma delas, que contraste. Logo a van chegou e voltei a Genebra pegar meu vôo. Fiz conexão em Zurique e pelo final da tarde o avião baixou pela cortina de nuvens e a ensolarada paisagem deu lugar uma gris e fria Londres. Perdi 4 quilos na viagem. Ganhei toneladas de experiência. Tô de volta... amanhã eu trabalho e de volta a vida normal. Na minha opinião, diria que o Mont Blanc é fisicamente exigente e tecnicamente inocente, esconde várias surpresas para os mais desavisados e em muitas situações um erro banal como um escorregão pode resultar em desastre. É difícil dizer que algo assim é fácil ou simples. Ainda que seja uma escalaminhada Peau Dificile, pode-se dizer que em vários trechos você realmente está escalando, sempre sob grande altura e exposição. Pra quem não tem experiência alguma, principalmente sob altura, vale levar um amigo que já tenha feito o trecho ou talvez o mais recomendado seja mesmo arrumar um guia. Vida não tem preço. Fazer sozinho é relativamente simples e exponencialmente mais perigoso e como diz o sábio, “camarão que dorme na praia a onda leva”. Amêm!
Dicas e informações técnicas
• Ao alugar os equipamentos dê um jeitinho brasileiro, explique que você vai escalar apenas “no dia seguinte” e peça um redução na diária do aluguel.
• O setor de informações turísticas fornece previsões atualizadas todos os dias
• Em muitos hostels o banho é pago a parte, uma ficha para 5 minutos custa em média 35 centavos de euro
• Os hostels fornecem um cartão que permite livre transporte nos ônibus de Chamonix